Significativos, ainda que imprecisos, são os anos da presença judaica no Brasil. Eles podem variar de acordo com a contagem escolhida: se desde o período das Grandes Navegações, ou por conta da Inquisição na Península Ibérica, ou da imigração marroquina, ou em virtude das perseguições czarista, nazista, comunista… ou de quando partiram em busca de um futuro próspero e seguro para si e seus descendentes. Judeus, que sempre se movimentaram pelo Velho Mundo, também encontraram seus caminhos para o Novo Mundo.
A presença dos judeus no Brasil foi muitas vezes indesejada e, de certo modo, invalidada, por questões alheias à forma com que pragmaticamente se relacionaram com o País: criando seus filhos, aprendendo o idioma, incorporando hábitos, fundando instituições para o bem comum e empresas, viabilizando o presente e semeando o futuro.
Do escritor judeu austríaco Stefan Zweig (Viena, 1881– Petrópolis, 1942) é a expressão “Brasil, País do futuro”. Zweig via na miscigenação das raças e etnias no Brasil o caminho da tolerância e integração que inaugurariam uma nova era de convivência humana. No Brasil e, em especial, na cidade do Rio de Janeiro nos séculos XIX e XX, podemos atribuir a fluida integração do imigrante judeu à multietnicidade de seus indivíduos, à horizontalidade de suas relações pessoais e institucionais, sem um poder central, e à sua resiliência.
Judaica, coleção que testemunha a História
Os imigrantes judeus das diferentes épocas trouxeram consigo não somente as particularidades de sua prática religiosa e os usos e costumes de seus países de origem, mas também um conjunto de documentos, livros e objetos com os quais deram continuidade às suas vidas judaicas. Esses objetos de uso ritual ou cotidiano, ligados intrinsicamente à sua observância da religião ou dos mandamentos alimentares ou comportamentais, constituem uma coleção denominada “Judaica” e podem estar ou ser usados na sinagoga ou no lar.
Na tradição judaica, os elementos simbólicos, comestíveis ou não, e os objetos confeccionados para contê-los, preservá-los ou apresentá-los são desprovidos de santidade em si e servem como instrumentos para a santificação da Criação Divina. Os objetos de Judaica, como castiçais, copos, recipientes para especiarias, candelabros, são como tal categorizados tanto por terem inscrições em hebraico ou no idioma da região de sua fabricação, relativas a um evento religioso ou do ciclo da vida, quanto, na ausência de tais características, por sua proveniência ou histórico de pertencimento.
Em maio de 2022, o Museu Histórico Nacional recebeu da Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro (ARI), fundada em 1942 por refugiados judeus alemães do regime nazista, a doação de um “porta-etrog”: objeto de Judaica usado para acomodar o etrog (fruta da cidra amarela), um dos elementos simbólicos da festividade de Sukot, a festa das cabanas. O Museu Histórico Nacional é hoje um dos primeiros museus sobre a história nacional de um país fora de Israel, quiçá o primeiro, a incluir a imigração e a presença dos judeus em seu acervo e programa institucional. Museus judaicos registram e expõem a imigração e a presença judaicas em vários países do mundo. Contudo, os museus sobre a história nacional não incluem a história dos judeus daquele país em sua narrativa ou exposição. A entrada do porta-etrog no acervo do Museu retrata a inserção da comunidade judaica no Brasil e celebra a forma hospitaleira com a qual os judeus foram recebidos no País.
Etrog, a fruta que sintetiza a integridade do caráter
Provavelmente originário do sudeste asiático, o etrog (Citrus medica) espalhou-se pela Pérsia e pela Mesopotâmia até a região do Mediterrâneo. Entre os séculos II e III chega à região de Calábria, na Itália, como a primeira fruta cítrica no continente europeu, possivelmente trazida do Oriente Médio por judeus.
A fruta é grande, claramente assimétrica na base, e sua casca, de um amarelo intenso e brilhante, é excepcionalmente irregular para uma fruta cítrica. As características do etrog exigidas para o uso ritual são muitas: A fruta deve apresentar um botão de flor na extremidade e sua casca deve ser lisa, sem rugas e sem manchas, e não apresentar machucado; e deve ser colhida de árvore saudável e que não tenha sido cruzada com uma planta cítrica convencional. Além disso, a fruta não deve ser redonda, nem muito elíptica, e grande suficiente para preencher a mão.
O etrog é usado simbolicamente na liturgia da festa de Sukot, que recorda as tendas/cabanas (sukot, em hebraico) que os israelitas construíram e habitaram no deserto do Sinai após a libertação do Egito (Êxodo). Nessa festa, quatro espécies vegetais simbolizam, por seu sabor e/ou aroma ou pela ausência deles, a diversidade dos indivíduos que formam a comunidade judaica. Uma dessas espécies é o etrog que, por ter tanto aroma como sabor, é associado à plenitude e à integridade de caráter.
Para salvaguardar a fruta durante os oito dias da festa, foram e ainda são fabricados ou adaptados recipientes, seguindo o estilo estético da época e lugar onde a comunidade judaica está estabelecida. De prata prensada, repuxada e cinzelada com motivos florais, o porta-etrog do Museu Histórico Nacional é provavelmente de meados do século XX e remete a um estilo estético usado desde o século XIX pela Escola de Artes Bezalel, em Jerusalém. O objeto traz inscrições em hebraico (Levítico 23:40: “Vocês colherão os frutos da árvore da cidra amarela.”) e em português (“No quadragésimo jubileu rabínico do Dr. Lemle. Dos cariocas em Israel à ARI 1-4-1973”), que explicitam seu uso e a ocasião em que foi dedicado à Sinagoga.
Grão-Rabino Dr. Henrique Lemle
Rabino Dr. Lemle (Augsburg, 1909 – Rio de Janeiro, 1978) assumiu seu primeiro posto como rabino na sinagoga liberal de Mannheim no dia 1º de abril de 1933, dia do boicote a estabelecimentos comerciais e consultórios médicos de judeus na Alemanha. Naquela ocasião, sua investidura ocorreu de forma discreta e sem a devida celebração. Ao completar 40 anos de atuação rabínica em 1973, a ARI, congregação da qual foi co-fundador e líder espiritual até sua morte, rendeu-lhe honrosas homenagens com serviços religiosos festivos de Shabat, na sexta-feira à noite e sábado de manhã, ocasião na qual o porta-etrog foi dedicado à Sinagoga em sua homenagem, e com a publicação de um boletim especial.
Dr. Lemle deixou marcas profundas na comunidade judaica brasileira e um legado valoroso para o Judaísmo mundial. Pertenceu à última geração de rabinos contemporâneos a atuar na Alemanha antes da Segunda Guerra Mundial e veio a tornar-se um dos mais influentes líderes espirituais dos judeus brasileiros. Em sua obra ‘O Drama Judaico’ de 1944, o Rabino Dr. Lemle manifesta gratidão: “Já há várias gerações, florescem, no centro e no norte do país, congregações de brasileiros israelitas, imperturbados na observância de sua religião. Esses filhos do Brasil alcançaram posições respeitadas na sociedade e na economia brasileiras, ao mesmo tempo que se destacam por sua lealdade à fé israelita. Desta forma, tornaram visível mais um traço do caráter verdadeiramente democrático deste país: a fidelidade à religião judaica não os impediu de serem classificados entre os filhos mais patrióticos do Brasil.”
Além de ter sido força propulsora dentro da comunidade judaica carioca e brasileira, Rabino Dr. Lemle procurou intensamente o diálogo com entidades cristãs e outras instâncias da sociedade brasileira, para unidos se empenharem por uma convivência pacífica entre as religiões e etnias, o que lhe foi reconhecido com a outorga do título de Cidadão Honorário da Cidade do Rio de Janeiro. Foi fundador da Fraternidade Judaico-Cristã, hoje Diálogo Inter-religioso e Interétnico, e implementou a cátedra de Língua Hebraica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sua morte em 1978 não encerrou sua obra abrangente, cujo efeito se perpetua como ensinamento de renovação, referência de convivência harmoniosa e exemplo de integração e inclusão.
O novo século impõe desafios novos, mas também traz questões rançosas que já deveriam ter sido superadas: antissemitismo, racismo, visões distorcidas sobre pessoas e povos. A visão de Stefan Zweig, a missão do Rabino Dr. Lemle e as vidas dos muitos imigrantes que fizeram do Brasil o seu lar, sintetizados nesse objeto representativo da tradição judaica e da integração ao País, urgem ser traduzidas em ações para a retomada de um projeto perene, em que conhecimento e entendimento levam à tolerância e à boa convivência.